Estúdio Literário - Elas, uma escrita de si
- mulheresquemehabitam
- 17 de fev.
- 5 min de leitura
Atualizado: 27 de fev.

O Estúdio Literário "Elas, uma escrita de si", contemplado pela Lei Paulo Gustavo, foi realizado na Biblioteca Pública Municipal Monteiro Lobato, de São Bernardo do Campo, em agosto de 2024. Foram quatro encontros que, a cada nova edição, se revelavam e se aprofundavam como um ato político de enfrentamento ao silêncio que, por muito tempo, foi imposto a muitas de nós. E, por meio da palavra, da imagem, da lágrima, do abraço, da voz, do olhar, da denúncia, da força, da descoberta e da coragem, nós, juntas, fomos construindo um projeto bonito, forte e revolucionário!
As histórias se revelavam subjetivamente, mas estávamos nos preparando para dar conta de um "A partir daqui...", certas de que não estávamos sozinhas, de que queríamos e podíamos seguir em frente, sonhando e "sonhando alto". E assim foi, validamos a “ousadia” de sonhar e criamos uma egrégora plural que ecoou vozes de uma diversidade necessária, onde paramos para nos ouvir e nos reconhecer, para descobrir que as opressões nos atravessam de formas diferentes, mas que podemos encontrar caminhos para que elas se dissolvam no amparo de nossa força coletiva.
Não fizemos literatura de autoajuda ou panfletária, fizemos literatura plural, com vozes de mulheres cis, trans, negras, indígenas, brancas, PcDs, reunidas para falar de si, escrever sobre si e transformar suas histórias subjetivas em narrativas coletivas.
O que nos atraiu para este projeto foi uma escrita de si carregada de desamparos, mas o que nos mantém conectadas para além dele é a poesia, porque já entendemos que se encantar e sorrir é muito mais bonito e revolucionário.
Abaixo segue imagem do nosso primeiro encontro.

No primeiro encontro, fizemos um exercício de aquecimento de escrita a partir da premissa "As mulheres da minha família...". As participantes foram convidadas a continuar essa frase como disparadora para a discussão seguinte, que abriria espaço para obras como Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, e A Construção do Patriarcado, de Gerda Lerner.
Seguimos com propostas de exercícios de escrita, sempre como um convite para refletirmos a partir de uma provocação teórica. Margareth Rago, professora, pesquisadora e escritora, publicou, entre outras obras, A Aventura de Contar-se: Feminismos, Escrita de Si e Invenções da Subjetividade. Ela afirma que os relatos autobiográficos reconstroem o passado, avaliam a experiência vivida e dão sentido ao presente. A narração de uma vida nos permite avaliar e reparar nossa própria história, reconstruindo significados para o momento em que vivemos.
Nesta obra Margareth Rago escreve história de mulheres que narram suas experiências vividas durante a ditadura. Amelinha Teles, Tania Navarro Swain, Norma de Abreu Telles, Maria Lygia Quartim de Moraes, Ivone Gebara, Gabriela Silva Leite e Criméia Alice de Almeida Schimit são algumas das mulheres que foram presas políticas e torturadas na Ditadura de 64.
“...Nas técnicas de si aqui trabalhadas há um movimento ativo de autoconstituição da subjetividade, a partir de práticas da liberdade. Na esteira dessas discussões e aproximando-as das questões do feminismo, focalizo as narrativas de si que essas mulheres constroem em depoimentos, em livros autobiográficos, ou em outros textos em que inscrevem e elaboram, nesse contexto, para diferenciar os discursos autobiográficos dessas militantes das autobiografias confessionais tradicionais, em que o indivíduo parte para uma busca introspectiva de si, pela escrita, tendo em vista reencontrar sua verdade essencial supostamente alojada no fundo da alma, na própria interioridade (Focault, 2004 a, p. 157). Aqui, ao contrário, trata-se de assumir o controle da própria vida, torna-se sujeito de si mesmo pelo trabalho de reinvenção da subjetividade possibilitado pela “escrita de si”. Trata-se de tornar-se autor do próprio script, a partir de uma relação específica do indivíduo consigo mesmo.”
Para além de Margareth Rago, tivemos contato com obras de Carolina Maria de Jesus, Amara Moira, Graça Graúna, Conceição Evaristo, Annie Ernaux, Zélia Gattai, Chimamanda Ngozi Adichie e Audre Lorde, que, junto com Michel Foucault, encerraram nosso encontro.

Michel Foucault, filósofo e historiador francês, diz que a escrita de si é uma tecnologia de resistência ao biopoder e que a subjetividade está em constante construção. Para Foucault, a escrita contribui para essa mudança e para a construção da subjetividade. Ao escrever sobre si, não se trata apenas de descrever o que foi feito, mas de se constituir como sujeito, de ser transformado e de performar diante das pessoas mediante o próprio ato de narrar quem se é.
"Erótico como poder", de Audre Lorde
Há muitos tipos de poder: os que são utilizáveis e os que não são, os reconhecidos e os desconhecidos. O erótico é um recurso que mora no interior de nós mesmas, assentado em um plano profundamente feminino e espiritual, e firmemente enraizado no poder de nossos sentimentos não pronunciados e ainda por reconhecer. Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer as fontes de poder inerentes à cultura das pessoas oprimidas, fontes das quais pode surgir a energia da mudança. No caso das mulheres, isso se traduziu na supressão do erótico como fonte de poder e informação em nossas vidas. (...) O erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. E uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos então observar qual de nossos afãs vitais nos coloca mais perto dessa plenitude.
Por fim, quero encerrar esta postagem contando brevemente por que o Estúdio Literário se tornou um projeto tão relevante para mim. Em 2022, ao iniciar a pesquisa para meu livro Eu, Tu, Elas, lançei um formulário na internet convidando mulheres a escreverem sobre suas experiências de violência sexual na infância. Recebi cerca de 140 respostas, muitas delas com o objetivo de denunciar, de romper o silêncio e de tirar de si um fardo que nunca deveriam ter carregado. Muitas pediram que suas histórias fossem narradas por mim, mas não consegui incluir todas no livro EU TU ELAS, e muitas ficaram de fora.
Retomando Margareth Rago, que parafraseia Foucault ao dizer que "a escrita de si é entendida como um cuidado de si e como abertura para o outro, como trabalho sobre o próprio eu em um contexto relacional... possibilidades de invenção de novos modos de existência, construídas a partir de outras relações de si para consigo e para com o outro...". Foi a partir dessa perspectiva que o Estúdio Literário – ELAS, uma escrita de si se tornou um projeto para convidar mulheres a escrever sobre si mesmas, fosse por meio da palavra, das artes visuais, da performance, da poesia ou da música e, na próxima postagem, conto um pouco mais sobre essas experiências.
Até lá!
Esse projeto foi beneficiado pela Lei Paulo Gustavo, promovida pela Secretaria de Cultura e Juventude de São Bernardo do Campo
Cláudia você vem tecendo um trabalho tão importante, cada etapa nos enriquece e nos encoraja. Participar da oficina Elas, uma escrita de si foi desafiador, mas também um cuidado comigo, como citou na fala de Margareth Rago. Este cuidado automaticamente se reflete em nosso cotidiano, em pessoas que estão a nossa volta. Muito obrigada