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Eu não seria o primeiro nome a aparecer nos jornais como a menina que não voltou pra casa.

Atualizado: 9 de fev. de 2024




Era o início de uma tarde de verão... Esta referência parece o começo de um romance americano que sempre nomeia as estações para demarcar um tempo, mas a abordagem que pretendo discutir aqui não é sobre um fenômeno que acontece em estações específicas. Isso acontece todos os dias, em todas as horas. Acontece com meninas e meninos, acontece aqui e em todos os países do mundo. Acontece porque a inocência de uma criança é visto como território livre para a violência dos adultos.


Era início de ano, acredito que fevereiro, porque me lembro das fortes chuvas, e provavelmente era verão, porque eu vestia uma saia azul com pregas até o joelho, camisa branca e não vestia uma blusa de frio. O sinal apitou, anunciando que a aula havia terminado. Ainda estava me acostumando com as regras da escola, já que nada ali tinha a leveza da pré-escola, que eu acabara de deixar e gostava tanto.

Minha professora da primeira série fugia às regras daquele lugar opressor. Chamava-se Margareth. Era uma mulher branca, tinha mais de trinta anos, cabelos ruivos e voz muito doce. Era paciente e atenciosa com os alunos. No final da aula, ela descia com as crianças pelas largas escadas da escola. Seguíamos para frente do colégio, enquanto ela seguia para a sala dos professores certa de que sua missão do dia havia sido cumprida.


O Regime Militar estava perdendo força depois da frustrada tentativa de manutenção do golpe de 1964, no evento Riocentro. A ditadura de controle às Instituições Estatais no Brasil estava com seu tempo contado, mas a prática estabelecida pelo reformado Código de Menores de 1979 era muito bem aplicada na escola em que eu estudava.


Cantávamos o Hino Nacional em fila, com as mãos ao lado do corpo ou com a mão direita no peito. Não podíamos rir. Na verdade, vivíamos sob a tutela do medo, porque tudo era tratado com muito rigor e rispidez. Eu tremia na base quando eventualmente chegava atrasada, porque havia forte repressão dos funcionários que controlavam a entrada, os mesmos funcionários que tinham extrema urgência para se livrarem das crianças ao final da aula. Não me lembro de se importarem muito com os cuidados destinados às crianças, não me recordo de qualquer adulto acompanhando a saída dos alunos, fazendo qualquer controle sobre quem eram as pessoas que os tiravam dali, garantindo qualquer proteção que assegurasse que aquelas crianças voltariam para suas casas em segurança.



Abro um parêntese aqui para fazer um paralelo entre passado e presente, e destacar que o Brasil avançou no debate sobre a infância com o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o ECA mesmo com trinta anos de atuação, ainda enfrenta morosidade em sua aplicação, já que vivemos numa cultura adultocêntrica que trata criança como objeto e não como sujeito, que a violenta e banaliza suas necessidades.


Das escadas era possível avistar uma enorme porta de ferro que levava a um pequeno espaço aberto próximo ao portão de saída. Naquele dia. chovia muito. Era uma chuva de verão muito forte, e as crianças se espremiam embaixo de uma marquise que ficava sob uma grande porta de ferro, para esperar pelos pais ou responsáveis que viessem buscá-las. Havia aquelas que iam embora sozinhas, as que ficavam à espera de seus cuidadores e as que eram esquecidas e ficavam à espera de qualquer coisa que se aproximasse com gentileza e cuidado.


A imagem era de caos. Uma estreita marquise, crianças amontoadas, adultos e seus guarda-chuva. O verão, a chuva e seus trovões. Roupas e mochilas molhadas. Rostos encharcados. No meu caso não eram apenas os pingos da chuva que escorriam pelo meu rosto, mas as tímidas e amedrontadas lágrimas denunciavam o pavor que me atravessava naquele momento. A cada criança que saia da marquise pra ir embora eu ficava ainda mais em pânico. “Fui esquecida na escola.”


Em todos aqueles rostos adultos não havia nenhum conhecido. Chorei de medo, porque não saberia voltar sozinha pra casa, porque não saberia atravessar a grande avenida que havia pelo caminho. Chorei porque eu era uma criança e estava me sentindo abandonada, vulnerável e com medo.


No meio daquela confusão uma voz se aproximou e perguntou se eu estava sozinha. Balancei a cabeça dizendo que sim. Ele se curvou tentando me acalmar. Era um homem gentil, que tinha entre 23 e 25 anos. Seus cabelos eram lisos, mas volumosos e num comprimento que cobria as orelhas e a nuca. Seus olhos eram grandes, num tom castanho claro, seus lábios eram carnudos e sua pele era morena queimada de sol.


“Seus pais não chegaram ainda?” Respondi que não com a cabeça. “Você quer que eu te leve pra casa?”

Não me lembro se um dia haviam me dito que não deveria dar atenção a estranhos, muito provavelmente sim, mas naquele instante o meu medo de ficar ali esquecida era maior a todos os outros, então eu só queria que alguém me levasse pra casa e aquele homem parecia estar disposto a isso. Respondi que sim, segurei em suas mãos que já estavam estendidas pra mim e saímos da escola sem nenhum impedimento.


Ele tinha um guarda-chuva preto e passou a me proteger da chuva. Sai do portão da escola com ele segurando em minhas mãos, andamos aproximadamente 200 metros, quando de repente ele parou. Do outro lado da rua tinha uma padaria e um outro homem estava parado em frente a ela. O desconhecido que me acompanhava, gritou algo pra ele e apontou pra mim. Um pouco confusa levantei meu olhar para acompanhar a cena e vi quando este segundo homem começou a se movimentar em nossa direção. Num súbito despertar, sem nenhuma certeza do que estava acontecendo, destravei as minhas mãos das mãos daquele homem e numa volta maratonista retornei pra escola em desespero.



Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas) 1,2 milhão de crianças desaparecem a cada ano no mundo. No Brasil a média fica entre 40 e 50 mil.   

Hoje, avaliando os riscos penso que não seria a primeira menina a não voltar pra casa depois da aula, não estrearia a possibilidade de ser um caso de desaparecimento, não seria a primeira menina a acreditar na boa vontade de um homem e aceitar suas ofertas de gentileza. Em 1980 eu não seria o primeiro nome a aparecer nos jornais como a menina que não voltou pra casa depois da escola, porque Araceli Cabrera Sànchez Crespo, de 8 anos, em 18 de maio de 1973 também não retornou pra sua família depois da aula, porque assim como Araceli, outras meninas desapareceram enquanto brincavam na frente de casa, no percurso da escola ou de algum comércio próximo de suas casas, porque meninas tem seus caminhos atravessados por homens que as dominam, levam-nas para as matas, para o fundo de suas casas, para os porões dos bares de seus pais, levam-nas para lugares escondidos, violentam-nas e as matam por exercício do poder.


Assim como eu, Araceli não compreendia sobre a maldade dos homens, não era capaz de intuir que

este mundo adultocêntrico, sobretudo falocêntrico é covarde e assassino, não tinha condições de imaginar que seu corpo seria covardemente violentado, porque assim como eu Araceli era só uma criança que gostava de brincar e de estudar. Assim como eu, Araceli ainda não era capaz de acreditar que os homens eram capazes de estuprá-la, matá-la e desfigurar o seu corpo com ácido.


Araceli não conseguiu livrar-se das mãos de Paulo Constateen Helal e de Dante Michelini, que agiram acobertados pelo pai de Dante. Os assassinos, drogaram Araceli, violentaram-na sexualmente e sob efeito de drogas arrancaram parte de seu peito e vagina com a boca. Num jogo perverso de corrupção em plena ditadura, os acusados usaram de suas influências junto ao Regime Militar e à polícia, para que as investigações não fossem adiante e, todos os réus foram absolvidos por “falta de provas”.



No ano de 2000, o dia 18 de maio foi instituído pelo Congresso Nacional como o Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual contra Crianças e Adolescentes e hoje, inspira o Maio Laranja.


Esse horror está longe de acabar, pois enquanto você lê esse texto, há uma criança sendo estuprada em algum lugar próximo a você. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou há 3 dias, que de janeiro a julho de 2023 foram registrados 34 mil casos de estupro e estupro de vulnerável no Brasil. Isso significa que a cada 8 minutos uma menina ou uma mulher foram estupradas em nosso país.

...

Não consigo me lembrar do que aconteceu depois que retornei à escola, não me lembro quem chegou para me buscar, não me lembro se pedi ajuda pra algum funcionário, se fui protegida, se eu me escondi, não consigo me lembrar de mais nada, portanto esta história se encerra com a minha fuga e o meu despertar daquele transe de inocência.



Nota: Este texto compõe a pesquisa para o projeto EU TU ELAS, beneficiado pelo PROAC Editais 20/2022, promovido pela Secretaria de Cultura e Economia e Indústria Criativa, do Governo do Estado de São Paulo.




 
 
 

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Eu sou Claudia Jordão, autora dos livros "Mulheres que me habitam" e "EU TU ELAS", ambos publicados pela Alpharrabio Edições.

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