A violência contra mulheres, como moeda de troca.
- mulheresquemehabitam
- 30 de out. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de nov. de 2023
MATERIAL REFERENCIAL PARA A PESQUISA DE "EU TU ELAS"

Quando passei a fazer um resgate da minha história com as violências que sofri, percebi que estava trilhando um caminho sem volta. Desde então, tenho buscado respostas pra entender como os homens foram adquiriram, ao longo da história, tamanha autoridade e liberdade para exercer violência sobre nossos corpos.
Devo uma grande parte do meu despertar feminista e da minha consciência sobre a construção social da mulher a Silvia Federici. Foi a partir de sua pesquisa de aproximadamente quarenta anos para a obra Calibã e a Bruxa – Mulheres corpo e acumulação primitiva, que me dei conta sobre como a máquina do machismo e do patriarcado seguem operando com engrenagens tão resistentes, sem nunca enfraquecer ou ficar obsoleta.
Neste mergulho histórico, arrisco dizer que esta máquina encontrou modos para se atualizar e manter o homem-branco-cis-hetero-eurocentrado cada vez mais certo de que o poder e o controle sobre as camadas de gênero, classe e raça da humanidade, estavam em suas mãos.
Ao retornar à historicidade da construção social de gênero, Silvia Federici despertou-me para o processo de acumulação primitiva, uma operação que encontrou na função sexual e reprodutiva das mulheres uma base poderosa para o estabelecimento efetivo do sistema capitalista.
Antes de falar sobre Silvia Federici, ac
redito que vale a pena lembrar que somos o resultado de um território invadido por europeus que violentamente dizimaram grande parte dos povos indígenas que habitavam essa terra. Vale lembrar que o exercício do poder e controle patriarcal que se distribui em todo o mundo ganhou força na Europa e se distribuiu por outras regiões, graças à violência do homem branco eurocentrado.
Segundo Silvia Federici, na Europa do século XII, homens e mulheres desempenhavam funções diferentes, mas sem julgamento de valor. Os homens saíam para caçar, enquanto as mulheres realizavam atividades domésticas e cuidavam da agricultura. Federici defende que, nesse período, as necessidades de sobrevivência ditavam as relações de gênero e não necessariamente estruturas de poder. Como terras eram comunitárias, todos tinham direito à plantação e à caça para suprir as necessidades de suas famílias. No entanto, com o cerco das terras e a transição gradual do feudalismo para o capitalismo, a sociedade passou a ser dividida em classes, e a desigualdade de gênero se intensificou, com as mulheres perdendo não apenas espaço no mercado de trabalho, mas sendo reduzidas as funções predominantemente sexuais e reprodutivas.
Os senhores de terras necessitavam de mão de obra para trabalhar em suas propriedades. Os camponeses, a fim de garantir a sobrevivência e um pedaço de terra, submetiam-se às leis e imposições do Estado e da Igreja, que favoreciam os nobres e os senhores ricos com grandes extensões de terra. As mulheres passaram a servir aos homens, que serviam ao Estado, o qual mantinha aliança com a Igreja, tudo com o intuito de estabelecer a ordem por meio de um contrato de obediência à humanidade a um Deus masculino e poderoso, que detinha o poder de punir e mostrar misericórdia, dependendo do grau de subordinação e submissão das mulheres aos homens, assim como dos pobres aos senhores. Enquanto os senhores de terras enriqueciam, a Igreja Católica, sob o pretexto de um Deus todo-poderoso, ditava as regras e os homens, ricos ou pobres, exerciam poder sobre as mulheres.
Um aspecto interessante é a menção aos hereges, que me intriga profundamente, pois tanto homens quanto mulheres poderiam ter sido agentes de uma grande revolução. No entanto, os homens se fecharam em seus privilégios e permitiram que apenas as mulheres fossem levadas à fogueira.
Retomando o fluxo cronológico, a Peste Negra, que vitimou aproximadamente 30% a 40% da população europeia entre os séculos XIV e XV, revirou as posições sociais de cabeça para baixo. Com a possibilidade de morte repentinamente, os camponeses se rebelaram e deixaram de se preocupar com o futuro e, consequentemente, com o trabalho. A mão de obra tornou-se escassa, e os prejuízo se tornaram um problema para o Estado. Como resolver a rebelião e restaurar a ordem? Entre a implementação de leis de incentivo máximo, incentivos financeiros e restrições à mobilidade dos trabalhadores, as autoridades políticas encontraram uma saída ardilosa e, em certa medida, cruel na relação com as mulheres.
Segundo Federici, passou a cooptar trabalhadores jovens e rebeldes, oferecendo-lhes acesso a relações sexuais com mulheres sem restrições e transtornos. Isso estimulou a retomada da mão de obra, transformando o antagonismo de classe em violência contra as mulheres. À noite, em grupos de dois a quinze, os homens invadiram as casas das mulheres proletárias e arrastaram pelas ruas sem a menor preocupação com possíveis punições. Uma vez violentadas, elas não conseguiram recuperar seu lugar na sociedade e, com a derrota, foram obrigadas a abandonar a cidade ou a se entregar à prostituição.
"A legalização do estupro criou um ambiente profundamente misógino que degradou todas as mulheres, independentemente de sua classe. Além disso, dessensibilizou a população em relação à violência contra as mulheres, preparando o terreno para o início da caça às bruxas nesse mesmo período."
Era o ano de 1500 quando o Brasil foi invadido por uma cultura europeia, misógina, machista e patriarcal. As práticas de violência contra as mulheres europeias foram enraizadas na normalidade. Quando as primeiras expedições chegaram aqui, apoiadas pela Igreja Católica, que desempenharam um papel fundamental na prática da Inquisição, as mulheres indígenas foram brutalmente violentadas, assassinadas e escravizadas. Essa prática colonial perversa continuou contra as mulheres negras, que, por mais de 350 anos, foram mantidas em cativeiro e submetidas a inúmeras atrocidades.
Nesta breve exploração sobre a formação da cultura do estupro na Europa, que ecoou na estrutura social do nosso país, é importante destacar que a violência sexual não surgiu nem se consolidou devido ao prazer, falta de controle ou natureza dos homens, mas sim devido ao exercício do poder e controle dos homens sobre as mulheres. Isso se deu pela capacidade de conferir aos homens o poder fálico de satisfação através do domínio sobre as mulheres subjugadas.
Minha emancipação e a transformação de minha vida originaram-se da constatação de que, historicamente, a culpa nunca foi nossa, pois sempre fomos vítimas de um sistema que nos oprimiu, violentou e se apropriou de nossos corpos e narrativas para se fortalecer. Um sistema que, respaldado pelo Estado e pela Igreja, concede aos homens a obrigação de se tornarem nossos senhores e nos impedir à submissão sexual e reprodutiva, independentemente de nossa opinião ou vontade.
Esse sistema objetificou nossa existência, retirando-nos a capacidade de sermos suscetíveis de nossa própria história. Não se tratava de nossa roupa, cabelo ou comportamento; Nunca foi sobre mim ou sobre nós, mas sempre foi sobre o poder e sobre eles. Atualmente, tenho plena consciência de como essa máquina patriarcal opera e tenho a audácia de desafiar a ordem estabelecida e me tornar um obstáculo em sua articulação.
Este projeto é beneficiado pelo ProAC Editais 20/2022 promovido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo.
Comments