"Mulheres, corpo e acumulação primitiva", e a dependência financeira
- mulheresquemehabitam
- 9 de mar. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 26 de abr. de 2021
Quando uma mulher está em situação de violência, existe uma série de fatores que a impedem de sair desta condição. Uma delas, pode ser a dependência emocional, e a outra, também muito recorrente, a dependência financeira. Para que possamos compreender um pouco melhor este fenômeno, é preciso retomar historicamente, como que a submissão financeira, das mulheres, se estabeleceu na sociedade.

Ilustração de uma mulher na antiguidade fabricando cerveja
Retomando nesta postagem a obra Calibã e a Bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici - que preciso reforçar sobre ter sido um divisor de águas na minha trajetória e compreensão sobre o ser social mulher que sou - farei aqui, um breve resumo histórico, a partir da pesquisa de Federicci, sobre como as mulheres passaram de autônomas à dependente financeira de seus maridos e como isso repercute até hoje na divisão sexual do trabalho e, principalmente, no fenômeno de violência contra mulheres.
Houve um tempo em que mulheres e homens assumiam os trabalhos, e a divisão sexual ocupava certo equilíbrio entre os gêneros. Com o cercamento das terras comunais, entre outras crises e relações de desigualdade social incorporadas, lentamente, pela transição do sistema feudal para o capitalista, este equilíbrio perdeu força e a mulher tornou-se moeda de troca, corpo reprodutivo, e objeto de servidão e exploração.
Na aldeia feudal não existia uma separação social entre a produção de bens e a reprodução da força de trabalho: todo o trabalho contribuía para o sustento familiar. As mulheres trabalhavam nos campos, além de criar os filhos, cozinhar, lavar, fiar e manter a horta; suas atividades domésticas não eram desvalorizadas e não supunham relações sociais diferentes das dos homens (...) as relações coletivas prevaleciam sobre as famílias e a maioria das tarefas realizadas pelas servas era realizada em cooperação com outras mulheres (...) Era uma base de uma intensa sociabilidade e solidariedade feminina que permitia às mulheres enfrentar os homens, embora a Igreja pregasse pela submissão e a Lei Canônica santificasse o direito do marido a bater em sua esposa.
O estabelecimento da relação entre senhores feudais e seus servos, se deu com o desmoronamento do sistema escravagista, que alimentou a economia da Roma Imperial. Os senhores de terra se viram obrigados a conceder aos escravos o direito a uma pequena parcela de terra, a fim de conter as constantes rebeliões e fugas para as margens do Império, onde estavam se organizando em comunidades autogovernáveis.
Na verdade, o processo escravagista não se findou, o que aconteceu foi o nascimento de uma nova relação de classe, em que pessoas escravizadas, deixaram de sofrer castigos, por julgadas “transgressões”, e passaram a exercer a "liberdade" como um camponês servil, subordinado às ordens do senhor feudal.
“A dependência das mulheres em relação aos homens na comunidade servil estava limitada pelo fato de que, sobre a autoridade de seus maridos e de seus pais, prevalecia a autoridade dos senhores, que se declaravam em posse das pessoas e da propriedade dos servos e tentavam controlar cada aspecto de suas vidas, desde o trabalho até o casamento e a conduta sexual. Era o senhor que mandava no trabalho e nas relações sociais das mulheres (...) decidia se uma viúva deveria se casar novamente (...) Em alguns casos reivindicavam, inclusive o ius primae noctis – o direito de deitar com a esposa do servo na noite de núpcias.”
Houve diversos conflitos entre o campesinato e os senhores de terra, por cruel, opressora e demasiada exploração aos servos, que gerou acordo por escrito, em que um destes resultava na substituição dos serviços laborais, por pagamentos em dinheiro, aos trabalhadores.
“Entretanto, os camponeses mais pobres – que possuíam somente uns poucos acres de terra, apenas o suficiente para a sua sobrevivência – perderam até o pouco que tinham. Obrigados a pagar suas obrigações em dinheiro, contraíram dívidas crônicas, pegando emprestado da conta de colheitas futuras, um processo que terminou fazendo com que muitos perdessem suas terras.”
As mulheres foram muito afetadas e encabeçaram um movimento de êxodo do campo, sendo as mais numerosas entre os imigrantes rurais nas cidades. Entre elas, principalmente as solteiras e viúvas, que foram completamente excluídas de posse de terras.
Ao chegarem à cidade, as mulheres depararam-se com mais liberdade para um exercício autônomo social. A subordinação aos homens era menor e podiam viver sozinhas, ou como chefes de suas famílias. Criaram comunidades em que compartilhavam moradia com outras mulheres, assumiram trabalhos que, posteriormente, foram considerados trabalhos masculinos como: ferreiras, açougueiras, padeiras, candeleiras, chapeleiras, cervejeiras e comerciantes. Estavam se tornando professoras, médicas, cirurgiãs, e começaram a competir com homens formados em universidades. A medida que ganhavam mais autonomia e independência, depararam-se com o início de reações misóginas por parte da Igreja, do Estado e da sociedade.
Feito este primeiro, e muito breve, parecer sobre como as mulheres exerciam certa autonomia sobre suas vidas até o século XIV, vou pular uma série de fatores de opressão aos quais as mulheres foram submetidas, sobretudo sob responsabilidade da Igreja Católica e do Estado, para seguir de forma resumida, ao ponto em que este texto pretende resultar.
“O desdobramento concomitante de uma crise populacional de uma teoria expansionista da população e de introdução de políticas que promoviam o crescimento populacional está bem documentado. Em meados do século XVI, a ideia de que a quantidade de cidadãos determinava a riqueza de uma nação havia se tornado algo parecido a um axioma social. (...) A preocupação com o crescimento da população pode ser detectada também no programa da Reforma Protestante. (...) As mulheres “são necessárias para produzir o crescimento da raça humana”, reconheceu Lutero, refletindo que, “quaisquer que sejam suas debilidades, as mulheres possuem uma virtude que anula todas elas: possuem um útero e podem dar à luz.”
Desta forma, medidas pró-natalistas tornaram-se assuntos de esfera pública. O casamento e a família passaram a ter importância na reprodução da força de trabalho. Métodos contraceptivos tornaram-se condenatórios, com castigos e severidades muito mais cruéis e relevantes do que as penas aplicadas aos homens. “A procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista. (...) Forçar as mulheres a procriar contra a sua vontade ou, (...) “produzir filhas e filhos para o Estado” é uma definição parcial das funções das mulheres na nova divisão sexual do trabalho.”
As mulheres perderam espaço nas atividades remuneradas, tradicionalmente, ocupadas, até então. Viram-se impedidas de trabalhar fora de casa, e foram sentenciadas a participar na “produção” e ajuda aos maridos. Todo trabalho realizado por ela, dentro do âmbito doméstico perdeu valor no mercado, mesmo quando estes eram prestados para outras pessoas, que não fossem da família.
“A desvalorização do trabalho feminino era tal que os governos das cidades ordenaram às guildas que ignorassem a produção que as mulheres (especialmente as viúvas) realizavam em suas casas por não se tratar realmente de trabalho (...) as mulheres aceitavam esta ficção e até mesmo se desculpavam por pedir trabalho, suplicando por um serviço devido à necessidade de se manterem. Rapidamente, todo o trabalho feminino, quando realizado em casa, seria definido como “tarefa doméstica”, e até mesmo quando feito fora de casa era pago a um valor menor do que pudessem sobreviver dele. O casamento era visto como a verdadeira carreira para uma mulher, e a incapacidade das mulheres de sobreviverem sozinhas era algo dado como tão certo que, quando uma mulher solteira tentava se assentar em um vilarejo, era expulsa, mesmo se ganhasse um salário.”
As mulheres expulsas de seus ofícios, foram colocadas, oficialmente, como reprodutoras de mão de obra, sem direito à ocupação remunerada, e assim definidas como: “mães, esposas, filhas, viúvas – (...) que davam aos homens livre acesso aos seus corpos, a seu trabalho e aos corpos e ao trabalho de seus filhos. (...) Esta foi a derrota histórica para as mulheres (...) a pobreza foi feminilizada."
Encerro aqui a explanação histórica a partir da pesquisa de Silvia Federicci. Reitero, que esta compreensão sobre como as relações de gênero se estabeleceram foi fundamental para que eu pudesse avaliar nossa trajetória até aqui.
Não decidimos nossa construção social, não determinamos nossa ocupação no mundo. As decisões sobre quem seríamos foram impostas perversamente pela Igreja, pelo Estado e por uma sociedade que, nos materializou como máquinas reprodutoras de pessoas, como instrumento reprodutivo de mão de obra. Fomos condicionadas a um processo de controle, que nos colocou na condição de servidão à família, à sociedade, assim como à esfera pública. Fomos e somos reféns de uma estrutura machista, patriarcal e capitalista, que ascendeu à custa de extrema violência contra às mulheres.
Tem sido um trabalho árduo retomar a autonomia, um dia, exercida pelas mulheres. Ao analisarmos estes dados históricos e avaliar estatísticas atuais, que nos colocam em desigualdade de gênero no âmbito profissional, dizem muito sobre mulheres, que estão em situação de violência, e esta será a pauta na qual aprofundaremos na próxima postagem.
Referências
Federici, Silvia. Calibá e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017
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