As mulheres que me habitam
- mulheresquemehabitam
- 14 de fev. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de mar. de 2021
Falar sobre as mulheres que habitam meu corpo e o constituem biologicamente é reconhecer a minha ancestralidade e compreender a minha existência como mulher.

"Num trabalho autobiográfico é preciso que tenhamos condições de olhar pra ele com distanciamento e não deixar com que ele seja um gatilho para reabrir feridas", disse Janaína Leite, num de seus cursos sobre teatro documentário.
Neste processo de reencontro com a minha história, a fim de compreender a minha construção como mulher e entender a minha trajetória de submissões e inseguranças, descobri que sou resultado de muitas dores, e falar sobre estas mulheres tem sido um processo de paz e reconhecimento.
Márcia Abujamra, em seu artigo A alma, o olho, a mão ou o uso da autobiografia no teatro, diz que "o ator que conta sua história, da maneira que escolher contá-la, torna-se um criador de si mesmo, contando e recontando, criando e recriando suas histórias, seu passado, seu futuro."
Este projeto tem me colocado num lugar de recriação de mim mesma a fim de, não apenas, reconhecer o meu passado, mas principalmente, criar mecanismos para mudar o meu futuro. A foto acima é de minha mãe e depois de apresentar sua imagem, apresento a vocês algumas narrativas das mulheres que me habitam.
Rosária, mãe de três filhos...
...sofria constantes violências físicas do “Capitão Americano”, como era chamado pelos moradores da aldeia onde morava em Portugal. Um homem rico e poderoso, que num dia tomado de fúria bateu em Rosária com tamanhã violência, que a surra levou-a a sérios problemas de saúde e à morte.
esta poderia ser uma história ficcional, mas Rosária é minha bisavó paterna.
Maria, certa vez, foi presa num forno de pedra...
... para deixar de incomodar o marido, que gostava de circular pelas tabernas da aldeia com os amigos, enquanto ela cuidava de seu filho ainda bebê.
esta poderia ser uma história ficcional, mas Maria é minha avó paterna.
Tereza, casada com Sebastião,
oficial da Polícia Militar, na época da ditatura, sofreu violência física desde que se casou. Não foi vítima de feminicídio, porque sua filha, aos 12 anos, aprendeu a desarmar a arma do pai, para que toda noite pudesse evitar uma tragédia em sua casa.
esta poderia ser uma história ficcional, mas Tereza é minha avó materna.
Cida, filha de Tereza...
...a partir de seus traumas de infância, tornou-se uma mulher calada e submissa ao marido. Tornou-se vítima de violência moral, psicológica e, às vezes, física.
esta poderia ser uma história ficcional, mas Cida é minha mãe.
Claudia, mulher, filha, mãe...
...compreendeu há pouco tempo sobre as lutas diárias que foram, e continuam necessárias para descontruir o machismo estrutural que permeia sua casa.
esta poderia ser uma história ficcional, mas Claudia sou eu.
Giovana, 22 anos, vítima de violência doméstica
Foi aqui, que Claudia entendeu, que para além de estrutural, era preciso estancar o sangue desta violência, que há mais de um século corre em suas veias...
esta poderia ser uma história ficcional, mas Giovana é minha filha.
Estas histórias constroem a mulher que sou. As mulheres que me habitam são de natureza forte, porém como muitas de nós, carregam histórias de muito sofrimento causado pela violência estrutural do machismo e do patriarcado.
Quando olhamos pra trás e percebemos que nossa árvore está repleta de frutos machucados, é chegada a hora de rever o plantio e cuidar melhor das sementes.
É assim que me sinto com este projeto, algo missional está pulsando em meu ventre desde que os frutos que nasceram depois de mim, ficaram expostos à perpetuação desta violência cruel imposta pelo machismo e pelo patriarcado.
o livro Mulheres que me habitam será pelas Rosárias, Marias, Terezas, Cidas, Giovanas, e por todas nós!
Referências
Abujamra, M. (2013). A alma, o olho, a mão ou o uso da autobiografia no teatro. Sala Preta, 13(2), 72-85. https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v13i2p72-85
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